Stela Rates
Dizem que a geografia de um lugar molda o temperamento de seus habitantes. Não saberia dizer quanta verdade há nisso, mas tendo a concordar. Nas bordas do sul da América do Sul, o tempo anda na cadência bem marcada das estações, numa aproximação dos ritmos esperados para a vida. Mas é o inverno que nos dá o tom. Quem por aqui nasceu não raro sente não haver, em tempo ou lugar algum, invernos como os de sua meninice. O frio está na infância. É a marca de nossa ancestralidade.
Não é um frio sem tréguas ou incapacitante, como nos extremos da terra. Nem um frio cinza e úmido, dia após dia, como no Velho Mundo. Nosso frio tem cor e pode ser segurado no peito. É também recatado. Na maioria das vezes, nos nega o deslumbramento da neve. Incerto, como um animal caprichoso, traz chuva miúda, manhãs brumosas, tardes ensolaradas.
Nosso frio é domado em volta do fogo. Fogo de chão, da lareira, do fogão a lenha, das espiriteiras, das velas, dos braseiros, das fogueiras de papel sob os viadutos e pontes. Assim, munidos de nossa força original, sobrevivemos às casas sem calefação, ao vento que corta, às noites longas e aos campos esbranquiçados de geada.
Nas cidades, nos salvam os aquecedores, os cachecóis e os cafés, que estilizam nossa busca atávica de calor e convívio. Um mate quente ou um bom vinho também ajudam. E o abraço acontece essencial, numa noite de inverno.
Este texto foi originalmente publicado no Jornal da UFRGS em 31 de Jul 2008 (JU Edição 110- Ago 2008)(https://issuu.com/jornaldauniversidade/docs/ju_110_-_agosto_2008), acompanhando um ensaio fotografíco de Daniel Marenco (A estética do frio).