Maria Avelina Gastal
Sangramos todos os meses por décadas. Sangramos ao parir, ao abortar. Sangramos por espancamento e violência. Nossos sangramentos são públicos, mas devem ser enfrentados no privado, acobertados por medo, vergonha e culpa.
Sangramos, sem expelir uma gota de sangue, quando desacreditadas, humilhadas, usadas, silenciadas. Nosso corpo carrega acusações, fazem de nós responsáveis pela invasão cometida por outro que não controla seu próprio desejo e nos vê como receptáculos para sua satisfação.
O segundo livro de Stela Rates, “Mãe, eu tô sangrando” (Editora Bestiário), recentemente lançado, percorre essa trilha de sangue feminino em doze contos e cinco minicontos, ampliando a noção de sangramento das mulheres para a desagregação das estruturas sociais, políticas e culturais que colocam a mulher ora como incapaz e frágil, ora como ardilosa e manipuladora.
Os contos têm narradores em primeira e terceira pessoa, adequados ao efeito buscado na narrativa. As cenas são descritas com elementos suficientes para que possamos fazer do ambiente um elemento essencial da ação. A construção das personagens se dá no desenrolar da história, possibilitando que sejam verdadeiras em seus conflitos e contradições.
A autora potencializa a máxima de Cortázar de que o conto vence por nocaute. Não há como ler o livro de Stela sem questionarmos certezas e o nosso papel na manutenção de situações que agridem o feminino.
Se a metáfora do sangramento feminino é o fio condutor do livro, ela não é limitante. O tema se amplia, abarca questões que vão além, trazendo tanto conteúdos atuais, quanto históricos e culturais, que se mesclam em uma narrativa que reproduz a imagem da mulher construída ao longo dos séculos e absorvida como forma estruturante das relações sociais e pessoais.
A linguagem é rica e impecável, adequando-se às características pertinentes ao tempo da narrativa, à relação entre as personagens, à classe social, ao pertencimento cultural.
São contos sob a ótica feminina, mas não contos para mulheres. São para todos aqueles que pretendem questionar suas verdades e romper com estruturas do patriarcado e do sexismo, ainda tão arraigados ao nosso cotidiano.
Stela nos provoca com a epígrafe A cada dia, aprendo um medo e uma força, de Ana Santos. A leitura de “Mãe, eu tô sangrando” reaviva medos, mas também nos faz perceber a força que temos para avançar.